Capítulo III - A FAZENDA COQUEIRAL

 

                A fazenda já podia ser vista por Jonas da estrada.  Continuava uma beleza, como em sua infância.  A visão da propriedade era digna de um quadro impressionista, pois, àquela época do ano, toda a vegetação florescia.   Tudo parecia vivo ao redor dos viajantes que passavam por aquela região. As construções eram emolduradas por árvores e moitas quase todas com flores.   Os prédios, as casas dos colonos e até os paus das cercas de arame farpado eram caiados de branco como que para destacar-se do resto das plantas.  Jonas passava pelos estábulos onde ficavam os animais e pelos galpões usados para guardar o maquinário, as ferramentas e toda a tralha que era usada no trabalho diário.   Começava agora a sentir o cheiro de esterco, terra molhada e água trazida pelo vento que vinha do litoral onde o imenso oceano banhava município.  Era um cheiro familiar que mexia com ele.  Era sua terra cumprimentando-o antes de qualquer habitante do lugar.

        Só faltavam alguns metros para chegar ao casarão da família Gouveia, mas ainda não dava para ver a sede da fazenda, porque o caminho sofria uma elevação que impedia a visão de quem estava na estrada.  Só ao final dessa subida é que a propriedade podia ser vista e invariavelmente, admirada. Era sempre com muita expectativa que Jonas aguardava o momento de lançar o primeiro olhar para a casa em que nascera.

         Vários coqueiros ladeavam a pequena estrada de chão e acompanhavam os visitantes até ao casarão.  Havia um impecável gramado que cobria cada centímetro de terra, em ambos os lados, e chegava a uma densa vegetação que circundava toda a sede.  Toda a beleza natural daqueles dois alqueires da propriedade ao redor da sede da fazenda era preservada para proporcionar a família e aos amigos prazerosas caminhadas em contato com flores variadas e plantas que apresentavam diferentes matizes de verde.   Bromélias, cáctus, e árvores pequenas, onde alguns tipos de orquídeas faziam moradia, predominavam na paisagem.  A beleza daquele lugar estava florescendo diante dos olhos de Jonas.  Era um pedaço de mato descendente da rica vegetação que cobrira toda àquela região um dia. 

        Infelizmente, seu pai e outros fazendeiros do município haviam derrubado o resto.  “Mato não trás dinheiro!” – afirmara seu pai quando Jonas o questionara quanto a necessidade de tanta destruição.  A restinga era verdejante naqueles meses de verão.  O calor trazia chuvas abundantes que tornavam toda aquela natureza mais viva e variada. 

        Finalmente, casarão apareceu, imponente e todo branco, com as grandes e sólidas janelas azuis.  Um imenso varandão envolvia todo o segundo andar e várias janelas e portas se abriam para ele, possibilitando aos moradores apreciar a vista dos jardins que se estendiam por todos os lados do prédio.   A visão daquela casa, depois de tanto tempo ausente, comoveu Jonas.  Somente naquele momento, pode perceber o quanto sentia falta de seu lar.  Um sorriso amargurado surgiu em seus lábios diante da possibilidade de que talvez tivesse que deixar aquela casa definitivamente, dependendo de como seria a conversa com o pai.

        Tentou afastar da mente aqueles pensamentos.  Não era necessário sofrer antes do tempo.  Apesar de já ter se decidido não se tornar um candidato, ele sabia que tudo poderia acontecer quando tinha que lidar com a intempestividade do pai.  Então, deixou-se admirar o casarão da família por alguns instantes parado no meio da estrada para tentar esquecer-se de suas preocupações.

        Era sempre uma surpresa olhar sua casa quando voltava para uma visita.  Nunca se sabia ao certo quais flores estariam nas jardineiras das janelas, pois sua avó sempre as trocava de tempos em tempos.   Ela cultivava vários vasos e fazia os empregados trocá-los em momentos especiais. 

        Naquele dia, estavam nas jardineiras os vasos com arranjos de azaléias de tons que alternavam do rosa ao roxo.  As flores preferidas da matriarca da família Gouveia e Castro eram um sinal de que todos os moradores estariam esperando a chegada de um visitante especial.   Jonas sorriu outra vez com a sutil homenagem à sua volta.

        Estar de novo naquelas terras, olhar o casarão depois de tanto tempo ausente, fez Jonas lembrar-se de sua infância.  Os melhores anos de sua vida!  Naqueles tempos, vivia correndo por aquelas estradas até anoitecer.  As matas que ainda sobraram em alguns trechos da imensa propriedade também serviram de esconderijo para Jonas, seu irmão e seus amigos fugirem da missa ou da preceptora, dona Norma, principalmente nos dias de teste oral de tabuada.  Eram tardes de intensas brincadeiras e noites de sono profundo, como resultado do cansaço tantas estripulias. 

         Aquelas terras eram conhecidas do rapaz que passara toda a sua infância ali.  E, portanto, sempre que voltava para a casa era tomado por forte emoção, fruto das lembranças de uma época que, apesar de todos os percalços, fora feliz. 

        Ele e seus dois irmãos mais novos, João Pedro e Helena, perderam a mãe, dona Carolina, ainda crianças.  A falecida mulher do coronel era conhecida por ser uma pessoa caridosa e gentil.  Nunca fora esquecida pelos colonos nem pelos filhos.  E eles passaram quase toda a infância, carentes do amor materno e ressentidos da pouca atenção que o pai lhes dava.  Os três irmãos cresceram órfãos de mãe e de pai por assim dizer.  Mas, a infância na fazenda não fora tão terrível como poderia ter sido, pois havia muitas crianças para brincar e liberdade de sobra para aprontar mil e uma traquinagens.

        onas amava aquele lugar e aquela família, entretanto, não aceitaria mudar sua vida para honrar um acordo político feito pelo pai mesmo que ele ameaçasse parar de financiar seus estudos.  Ele sentia-se grato pela oportunidade de cursar uma faculdade tão boa e cara quanto à do Rio de Janeiro graças ao dinheiro do coronel, mas sua gratidão não o impediria de lutar contra as ordens do pai.  Não era justo ter de interromper seu sonho tão perto de sua realização. 

        Passara toda a viagem, tentando encontrar uma maneira de convencer o fazendeiro a deixá-lo concluir seus estudos e desistir de lançá-lo como candidato a algum cargo público.  Aquilo não era para ele, todavia, por mais que tentasse, não conseguia encontrar argumentos suficientes para dissuadir o pai de seu propósito.

        Subitamente, Jonas foi assaltado pela lembrança da jovem que há pouco encontrara na estrada.  Repassou mentalmente os últimos acontecimentos ao lado de Ana e admirou a sua beleza quase etérea.   Ele sentiu-se arrepiar ao lembrar-se da proximidade do corpo frágil de encontro ao seu, da respiração forte de ambos tão próximos um ao outro.  Lembrou-se também, dos olhos castanhos amedrontados, fitando-o como que pedindo para fugir de seu abraço.  E experimentou aquele mesmo sentimento de culpa que o fizera deixá-la ir quando, na verdade, queria beijá-la com paixão. 

        Não conseguia entender como sentira uma atração tão forte por uma moça tão modesta.  Justo ele que estava acostumado a cortejar belas mulheres e nunca tivera inibição em conquistar-lhes o afeto.  Ele comportara-se como um homem rude, igual àqueles de quem tanto reprovava a atitude.  Homens como os daquele lugar, que não sabiam lidar com o espírito feminino e usavam da força para dominar às mulheres que julgavam lhes pertencer.

        Não encontrava uma explicação para o que acontecera e por sua total falta de controle diante da proximidade daquela moça.  Sentia-se ainda mais surpreso com a insistência com que ele relembrava daqueles momentos.  Era como seu inconsciente o censurasse por deixá-la ir.  Era como se houvesse perdido algo, perdido um momento importante em sua vida.  Tentou afastar aquelas estranhas sensações que quase o faziam voltar pelo caminho oposto e tentar encontrá-la novamente.  Sabia que queria de vê-la outra vez, mas tinha assuntos muito urgentes para resolver, por isso, instintivamente, segurou as rédeas do cavalo com mais força e acelerou seu trote da direção ao casarão.

        Seu devaneio foi interrompido pela visão da irmã caçula que havia surgido na varanda e já entrara, aos gritos, dentro de casa para comunicar a todos a sua chegada.  Em segundos, avistou Helena descendo a escadaria externa que dava para o jardim da casa.  Ela corria e chamava seu nome, acenando como se Jonas não a tivesse avistado há muito tempo.  O jovem sorriu e acenou também.  Helena já não era uma criança, virara uma moça linda, com compridos cabelos negros e lindos olhos verdes. 

        Era parecida com ele, mas só fisicamente, pois seu temperamento era agitadíssimo.  Não conseguia ficar quieta nem parar de falar um instante.  Sempre se divertira muito com a irmã e muitas vezes, às custas da pobrezinha já que era muito fácil deixá-la descontrolada.  E quando isso acontecia era um verdadeiro espetáculo: não sobrava pedra sobre pedra.

        - Jonas, até que em fim! Não durmo a dois dias esperando o domingo chegar.  E depois, descobrimos que seu trem só chegaria na segunda.  Aí você inventa de vir a cavalo da cidade até aqui!  Não sabe o quanto sofri de pura ansiedade.  Conte-me as novidades da cidade grande!  Tem ido a muitos bailes?  Já tem uma namorada?

        - Acalme-se mana, respire e cale-se um minutinho.  Eu ainda não recebi meu abraço! – disse Jonas descendo do cavalo, puxando a irmã pela cintura e envolvendo-a num longo abraço.  Longo demais para a garota.

        - Ai Jonas, você está amarrotando o meu vestido novo.  Olha como é bonito! – falou a menina distanciando-se do irmão e dando uma voltinha para ser admirada.  Só então ela percebeu que o rapaz estava todo enlameado. – Jonas, você está todo sujo!  Deve ter manchado o meu vestido também.  O que aconteceu? – perguntou a menina queixosa.

        - Nada de mais, mana. – Jonas não reparara em seu estado.  Tirou o paletó de linho creme e dobrou as mangas sujas da camisa.  - E a propósito, você ficaria linda até vestida com trapos. – Jonas sorriu com a pequena futilidade da menina.  Não queria comentar ainda sobre o acidente, pois Helena era muito exagerada e provavelmente, faria o maior alarde se ele contasse que foi atirado de seu cavalo.  Ele pegou-a pela mão e subiram a escada que levava até a porta do primeiro andar do casarão.

        - Quando papai disse que você viria, eu e João fomos a Campos para eu comprar um vestido especial, afinal eu não poderia participar dessa comemoração de boas vindas usando um dos meus vestidos feios e antigos.  O João não queria esperar que eu escolhesse outros.  Assim que eu encontrei esse vestido, ele me arrastou para o carro e não pude comprar mais nada.  Você precisa ver como o João está insuportável!

        Ele não conseguiu responder a observação da irmã, pois logo que chegou à porta de casa, foi abraçado e beijado por velhos empregados e pelo seu irmão, João Pedro.  Em meio a tantas demonstrações de carinho, Jonas avistou sua avó que esperava pacientemente no final de uma longa fila de admiradores. 

        Dona Beatriz Gouveia continuava como ele se recordava da última vez que a vira, serena e sempre com um sorriso complacente nos lábios.  Ela era pequena, tinha uma pele bastante alva e quase sem rugas.  Não aparentava a idade que tinha.  Era uma mulher de poucas palavras, mas o seu olhar falava tudo que o neto precisava ouvir e que os lábios não diziam.  Ele abraçou-a gentilmente, pois ela já estava muito idosa.  Sentiu o seu perfume tão familiar e olhou-a intensamente nos olhos.  Ela sabia de tudo e estava preocupada com o encontro do filho com o neto.  Ele sorriu com certa amargura e apertou-lhe ambas as mãos.  Ela suspirou e falou finalmente:

        - Tenha calma. 

        - Vou tentar, mas sabe como é difícil... – o neto e a avó nunca precisaram de muitas palavras para se entender.

        - É cedo para temores.  Seu pai saiu e ainda não voltou.  Podemos ir para cozinha.  A Diná preparou bolos, doces e sanduíches.  Parece uma festa! - sorriu a matriarca.  - Vai ter que comer tudo e repetir.  A pobre mulher só pensa em fazer comida desde que soubemos de sua volta, meu filho.

        O jovem despediu-se dos colonos que estavam amontoados na porta da casa à sua espera e caminhou com os demais membros da família para dentro.  Atravessaram o corredor em direção à cozinha para encontrar a velha empregada do casarão.

        Diná fora cozinheira de sua avó a vida toda.  Era uma mulata gorducha, de meia idade, muito rabugenta e que se sentia dona da cozinha do casarão.  Seu mal-humor era compensado pelo tempero formidável que tinha a sua comida.  Também era a pessoa mais fiel do mundo e tratava os netos de dona Beatriz como se fossem seus próprios netos.  Com direito a broncas, castigos e muitos mimos.

        - Até que enfim você chegou menino!  - Ela não era de abraços, por isso, ele já esperava ser puxado para a mesa (como foi!) e receber uma bronca em vez de um cumprimento fraternal.

        - Senta aí e come tudo.  Está parecendo um graveto.  Quem cuida de você naquele lugar? - mas, ao olhar mais atentamente para o rapaz, percebeu seu estado deplorável e o puxou de novo para fora da mesa, Jonas nem conseguira sentar-se.  - Pelo amor de Deus, você foi enterrado vivo?  Pode levantar.  Ninguém vai conseguir comer com você sujo desse jeito.  Vai logo se lavar, porque o povo tá louco para comer também.

        Jonas ria de tudo.  Só aquela mulher poderia falar com o filho do coronel assim.  Ela dava bronca até no próprio dono da casa.  E não adiantava discutir, pois Diná não era repreendida por ninguém e tinha amplos poderes dentro da cozinha da família Gouveia.  Todos a amavam! 

        Ele foi até um pequeno toalete que ficava entre a sala de jantar e a cozinha para lavar o rosto e as mãos.  Ao voltar para a mesa, o jovem contou sobre o tombo que levou por causa da carroça da moça desconhecida.  Todos ouviram admirados: a avó, Diná, Helena, que não parava de andar pela cozinha, além de João Pedro.  Contudo, Jonas omitiu que quase beijou Ana à força.

        - Pelo nome e descrição, essa moça parece ser a irmã do Miguel Ferreira.  - Comentou João sério.

        - Irmã do Miguel! Aquela que estava sempre doentinha?  Mas ela não era loira? – Jonas estava confuso

        - Não, essa morreu ainda novinha coitadinha.  Não se lembra?  Foi tão triste! - Dona Beatriz ajudara a vestir o anjinho, pois dona Luciana estava de resguardo dos filhos mais novos que nasceram gêmeos.

        - Ana quase não saia de casa.    Sempre foi um bichinho assustado.  Não me lembro de ter brincado muito com ela quando era menina. – admirou-se Helena

         - Você é uma menina! – João comentou secamente.  O irmão adorava implicar com Heleninha.

         - Não sou não! Vovó, o João já está mexendo comigo de novo! – reclamou infantilmente a garota.

         - Chega! Na minha cozinha eu não quero discussão! – antecipou-se Diná.

         - Ana mudou muito nos últimos anos.  Pode continuar arredia, mas já é uma moça trabalhadeira e prendada. Cuida dos irmãos menores porque a mãe que está muito doente e ainda faz alguns pequenos trabalhos de bordado para conseguir algum dinheiro para a família.  Tenho muita pena daquela pobre criatura.  Parece que nasceu para sofrer! – dona Beatriz acompanhava a vida da família Ferreira há muitos anos e conhecia bem a jovem.

          - Não seria bom comentar isso por ai.  Principalmente com o nosso pai, Jonas.   Há um ano atrás, o pai da Ana e do Miguel invadiu o casarão e quase matou nosso pai.  Ele foi preso e seria mandado para um presídio no Rio quando conseguiu escapar e nunca mais se ouviu falar dele.  A família ainda vive aqui, graças à bondade da vovó que pediu para o nosso pai não expulsá-los, mas não há mais amizade entre os Gouveias e os Ferreiras.  O Miguel morre de ódio de todos nós e proibiu os irmãos de terem qualquer tipo de contato conosco. – enquanto João Pedro comentava resumidamente situação, todos permaneceram em silêncio.   Dona Beatriz ouvia o relato do neto com uma expressão de melancolia nos olhos, o rompimento entre as famílias fora motivo de tensão em toda a fazenda.

        Jonas ficou boquiaberto com a notícia.  Nunca soube desse fato que parecia tão inacreditável, pois o Sr. Manoel Ferreira era o administrador da fazenda e parecia ser o braço direito de seu pai na propriedade.  Miguel fora seu grande companheiro de brincadeiras, na infância.  Jonas considerava-o o seu melhor amigo, na época.  A família Ferreira sempre fora muito querida por todos na fazenda.  Era inacreditável que tudo aquilo houvesse acontecido, de fato.  O jovem censurou-se por ficar tanto tempo ausente de casa, mas o que lhe impressionava era como ele nunca fora informado do acontecido, por seus familiares.

         - É verdade, meu filho.  Não seria bom comentar tal episódio com seu pai, por mais acidental que possa ter sido.  O Miguel e o coronel têm se estranhado muito.  Seu pai pode achar que foi uma armadilha do jovem para machucar você. – dona Beatriz reafirmou a preocupação do neto.

          - Por favor, vovó.  Ana não poderia machucar-me nem se quisesse e o Miguel sempre foi meu melhor amigo.  Mesmo que esse terrível fato tenha acontecido entre as famílias, tenho certeza de que ele jamais faria nada para me ferir.  Isso é um absurdo! – Jonas recusava-se a pensar no amigo de infância e em sua doce irmã como uma dupla de malfeitores.  Lembrou-se novamente do encontro com Ana e sentiu vergonha de sua atitude e de escondê-la da família. 

           - É melhor ficar de boca fechada, garoto.  O velho coronel não é para brincadeira não.  Ele tá querendo pegar o Miguel de qualquer jeito.  Pode até usar isso como desculpa para colocar alguém daquela família preso. – como sempre Diná falava o que todo mundo pensava, mas não tinha coragem de dizer.  E, conhecendo o coronel como ele conhecia, não era nenhum absurdo o pai usar o fato para prender o amigo.

           - O que está acontecendo nessa fazenda?  Eu nunca soube que nosso pai tinha sofrido um atentado.  Ainda mais que o Sr. Manoel tivesse sido o autor do fato! – Jonas não conseguia acreditar que a família tivesse deliberadamente escondido isso dele. – Quando foi que isso se deu?

            - No verão do ano passado.  Você não estava aqui, pois tinha conseguido um estágio num hospital, lembra?  Nosso pai deu ordens expressas de que você não deveria saber de nada.  Isso poderia atrapalhar os seus estudos como ele disse.  Além do mais, ele não sofreu nenhum arranhão. – disse João.

            - Então, o coronel estava preocupado com os meus estudos no Rio de Janeiro.  Isso é bem engraçado... – Jonas parecia amargurado.

            - Nosso pai queria muito ter um filho doutor. – João respondeu com um leve tom de cinismo na voz.

            - É.  Ele já tinha um fazendeiro, não é? – rebateu Jonas no mesmo tom. 

        João nunca aceitara totalmente o fato do coronel não mandá-lo também para a cidade grande.  Contudo, todos sabiam da preferência do pai pelo filho do meio, provavelmente porque era o filho que mais se parecia com ele.  A mesma estatura mediana, o olhar feroz, os mesmos olhos azuis e cabelos castanhos dourados.  Mas, o que mais o assemelhava ao coronel era o temperamento.  João sempre fora mais prático e realista que o irmão mais velho.  Era também bem menos carismático.   Tinha tanta autoridade quanto o pai entre os empregados e, desde antes da partida de Jonas para o Rio, já o ajudava a administrar toda a fazenda.  Não seria surpresa para ninguém então que João, em vez de Jonas, assumisse os negócios da família.  Jonas nunca se importou com o fato, mas magoava-o a inveja do irmão que já ele tinha o mais importante: a atenção do pai.

        João não retrucou a observação de Jonas, pois sabia que tinha ressuscitado um assunto delicado para ambos.  Desde muito cedo, o coronel começou a se ligar mais ao filho mais jovem em virtude dos negócios da fazenda.  João Pedro sentia que Jonas lamentava-se de não estar tanto na companhia do pai como ele sempre estava.  Para desviar o assunto, voltou a mencionar a jovem Ferreira e parecia preocupado demais com ela.

         - Não fale nada sobre esse incidente com nosso pai, por precaução.  Ana já tem problemas demais com o irmão briguento e com a mãe doente.  Ela é só um pouco mais velha que nossa irmã – João parecia disposto a suplicar.

         - Não vou falar nada, não se preocupem.  Já esqueci na verdade.  Não teve importância, pois ninguém se machucou.  Eu só fiquei muito sujo para sentar à mesa da cozinha da Diná, só isso. – tranquilizou Jonas com um sorriso maroto e esperou um novo sermão da cozinheira.

        Mas Diná não havia prestado atenção ao rapaz.  Ela pensava agora em Ana e em toda família Ferreira.  Sempre tivera certeza de que aquela gente vivia uma vida difícil por causa do passado.  Era impressionante como as pessoas podiam acabar com suas vidas por pura tolice.  Sentia pena daquela gente.  Nãna, quando jovem, fora a grande paixão do coronel Antônio e ele a dela, mas a maledicência das pessoas do lugar separou o casal e a teimosia de ambos os jovens se encarregou de mantê-los separados por tantos anos.  Enfim, tudo deu errado!

        Aquelas famílias deveriam estar unidas numa só.  Aqueles meninos que viu nascer e acompanhou a amizade de infância deveriam ser irmãos.  O jovem casal sempre falara em muitos filhos para encher a fazenda de crianças, mas tudo se acabou de uma maneira triste.  Os dois namorados tornaram-se pessoas infelizes e fizeram, involuntariamente, a infelicidade de todos.

        Perdida em devaneios, Diná imaginava como seria se o casal não houvesse rompido tantos anos antes.  O menino Miguel seria com certeza, o braço direito do coronel e, ao lado de João Pedro, tocaria a fazenda.  Jonas terminaria o curso de medicina na cidade grande e voltaria a São João para exercer sua profissão e ajudar aquele povo tão carente.  Podia até imaginar as duas meninas, Helena e Ana, preparando-se para bailes e sendo disputadas pelos bons partidos da cidade.  E os gêmeos, Rosa e o Joãozinho!  Eles poderiam brincar pelos imensos espaços vazios do casarão e ela teria muito prazer em enchê-los de doces.  Talvez até a pequena Lídia estivesse entre eles e não tivesse morrido ainda novinha.  Aqueles filhos mereciam uma vida melhor.  Todos lucrariam muito mais se os dois antigos namorados não tivessem sido tão orgulhosos para pedir perdão.

        Quando Diná deu por si, estavam todos paralisados na cozinha. O silêncio das pessoas tirou-a de suas recordações, mas logo pode ver o motivo da mudança na animação da família.  O coronel estava parado à porta da cozinha há algum tempo sem ser percebido.  Quanto tempo seria, era o que pensavam todos com certeza.

        O coronel permaneceu naquele lugar, olhando alternadamente para todos com um sorriso divertido no canto dos lábios.  Ele gostava da sensação de temor que provocava na família.  Já desistira de tentar se aproximar dos filhos, pois sabia que não conseguiria. Seu comportamento frio e distante era temperado por uma impulsividade que o tornava sempre imprevisível para todos e para ele próprio.  Dos filhos, só João Pedro parecia saber lidar com a sua personalidade, mas mesmo assim, era difícil para aquele homem externar seu amor por qualquer membro da família.  Então, conformava-se com o distanciamento e até, amarguradamente, divertia-se com a tensão que provocava quando entrava nos ambientes da casa.

        Seu filho mais velho já tinha chegado e todos conversavam animadamente na cozinha, mas, as últimas palavras trocadas entre Jonas e João Pedro haviam-no intrigado.  O que ele não deveria saber sobre a filha da Nãna?  Decidiu aguardar o momento certo para colocar João Pedro contra a parede.

        - Boa tarde, Jonas.  - cumprimentou secamente o filho que não via a quase dois anos.  - Parece que meu atraso não foi muito difícil de tolerar.  Como estão as coisas na cidade grande? – perguntou o pai mais por educação do que por real interesse.

        - Boa tarde, senhor. – respondeu o filho polidamente. - As coisas vão indo como sempre.  Tenho estudado muito nesse último ano de faculdade. – Jonas sempre se sentia tolo quando conversava com o pai.       

        - Bom, preciso falar com você a sós, mas tenho algumas coisas urgentes para fazer antes disso.  Acomode-se e aprecie um pouco mais a companhia dos seus irmãos.  Conversaremos após o jantar.  Até lá. – o coronel saiu sem falar com mais ninguém. 

        Todos esperaram em silêncio até que a figura do dono da fazenda sumisse por uma porta no fim do corredor para analisar o que o coronel poderia ter ouvido da conversa entre os irmãos. A tensão era quase palpável.  Todos trocavam olhares interrogativos, pois ninguém havia se dado conta da presença do pai na cozinha.

        _ Uff! Quase engasguei com um pedaço de bolo quando vi papai na porta! – Helenina foi a primeira a interromper o silêncio.

        - Acho que se ele ouviu algo, o melhor a fazer é agir com naturalidade, pois logo saberemos se ele tomar alguma medida contra a família Ferreira. – dona Beatriz conhecia muito bem o filho.

         - Talvez devêssemos falar com ele já que nem sabemos ao certo se era a mesma jovem.  Seria muito injusto deixar o nosso pai tomar alguma providência e, no final, constatarmos que a moça era outra. - Jonas sentiu-se angustiado com a possibilidade de Ana sofrer alguma repreenda do pai por sua causa.

        - Ele vai perguntar para mim, sei disso.  Então, eu invento algo. – novamente João estava sério.

        - Vamos parar de preocupações desnecessárias.  Seu pai não é louco de fazer mal a uma moça que viu crescer.  O máximo que ele pode pensar é que se tratava de uma armação do Miguel, mas eu mesma vou falar com ele na hora do jantar e deixar as coisas claras. – a avó parecia decidida a dar um fim daquela conversa.  - Por hora, vamos nos ocupar de outras coisas como, por exemplo, provar dessas guloseimas maravilhosas que a Diná fez para a sua chegada Jonas.

        - É claro vovó, mas antes eu gostaria de tomar um banho e trocar de roupa.  Realmente estou incomodado com meu estado.  – Jonas dizia isso e olhava o irmão que continuava muito sério e pensativo.  Algo no semblante de João o deixou preocupado. - Por que não começam sem mim?  Eu volto rapidamente. – disse isso levantando-se e acenando discretamente para que a avó o acompanhasse.  Havia algo incomum na expressão do irmão e, com certeza, a senhora Gouveia saberia o motivo.

        Dona Beatriz levantou-se e deixou a cozinha de braços dados com o neto.  Ninguém levantou o olhar, pois era muito comum os dois andarem um na companhia do outro.  Todos sabiam da afinidade da avó com o neto mais velho.  Naquele momento, os dois precisavam trocar informações que colocassem o jovem a par das mudanças na fazenda.  Ele estava ansioso já que pressentira que algo estava acontecendo além do que já lhe havia sido contado e imaginava que era alguma coisa relacionada ao irmão.

        Assim que Jonas e sua avó saíram da cozinha, João levantou-se e saiu por uma porta lateral que dava para o terreno dos fundos.  Pela expressão de seu rosto, sairia para fazer algo a respeito do assunto.  Não esperaria pela interseção da avó junto ao pai.  Somente Helena permanecia alheia aos acontecimentos dos últimos minutos.  Continuou na cozinha servindo-se de tudo um pouco e tagarelando com Diná sem observar que a pobre empregada também estava preocupada com o seu irmão João.

        Quando Jonas e a avó chegaram ao quarto, o jovem teve uma boa surpresa que o afastou de suas preocupações por alguns momentos.  O dormitório fora todo modificado.  Em lugar da estreita cama de solteiro havia uma grande cama de mogno, bastante sólida e com a cabeceira imponente entalhada.  Na parede, do lado direito, havia uma escrivaninha da mesma madeira com várias repartições e uma confortável cadeira, com braços longos, estofada em veludo azul.  Havia cortinas azuis e brancas nas duas janelas que ladeavam a cabeceira da imensa cama.  O guarda-roupa ainda era o mesmo de antes, mas agora dividia a parede de frente para a cama com uma bela cômoda de oito gavetas com puxadores prateados.

         - Trocamos a mobília do seu irmão também.  Já são homens e precisam de móveis mais amplos. - Dona Beatriz deliciava-se com o olhar de surpresa do neto.

         - Obrigado vovó.  O quarto está irreconhecível e muito bonito. – passada a surpresa inicial, Jonas voltara a preocupar-se com seu irmão, mas para não desapontar a avó, exibia um sorriso cortês nos lábios.  Estava muito ansioso para saber o que estava acontecendo com João.

         - Ele está apaixonado por ela.  Acho, na verdade, que sempre foi. – dona Beatriz adivinhara novamente o motivo de preocupação do neto.

         - Apaixonado, por quem? – Jonas não conseguiu entender imediatamente o que a avó estava falando.

         - Ana. – respondeu a anciã simplesmente.

Jonas sentiu um aperto no peito.  Não entendeu o motivo daquela sensação, mas sentira raiva ao saber que o irmão amava a mesma jovem que o tinha deslumbrado há algumas horas atrás.

          - Quando as coisas ficaram difíceis entre nós e os Ferreiras, ele veio confessar para mim o seu amor por ela.  Parece que é um amor não correspondido, mas isso não incomoda muito seu irmão.  Não mais que o fato das famílias terem cortado relações de amizade.  – dona Beatriz estava com a expressão preocupada.

         - Deve ter sido um grande esforço para ele admitir para alguém essa fraqueza por uma jovem de família inimiga. Sabe como ele é ligado a seu pai.  – continuou dona Beatriz, pensativa.  - Mas, ele tinha medo que Antônio expulsasse a família de Manoel de nossas terras e me pediu para interceder por eles junto ao seu pai.  - afirmou a senhora Gouveia com um sorriso nos lábios. - O fato é que, depois disso, ele tornou-me sua confidente.  E isso foi muito bom, pois posso saber o que está pensando e tento controlar suas atitudes.  Ele está muito confuso Jonas.  Seu irmão está entre duas pessoas que gosta muito. - A senhora falava sem olhar para seu neto que estava com o rosto voltado para uma das janelas, por isso não podia ver o quanto suas palavras o estavam afetando. 

        Jonas sentia uma mistura estranha de sentimentos.  Sentira raiva do irmão por descobri-lo apaixonado pela mesma moça que estivera em seus braços àquela tarde.  Depois, sentiu vergonha desse sentimento tão intenso.  Era natural que eles se interessassem um pelo outro, pois sempre estiveram muito próximos, convivendo dia a dia naquelas terras.  Enfim, Jonas sentiu uma tristeza que não conseguia explicar.  Na verdade, aquela jovem havia mexido com ele, mas, ao saber do interesse do irmão por ela, deveria esquecer aquele encontro. 

        Tentou disfarçar sua frustração para a avó.  Não havia motivo para deixar dona Beatriz preocupada com uma possível rivalidade entre os netos.  Decidira que não iria nutrir por Ana nenhum sentimento romântico, mesmo que o amor do irmão não fosse correspondido.  Ele jamais poderia passar por cima dos sentimentos de João para tentar conquistar aquela moça.  No entanto, apesar de ter certeza de que a questão estava resolvida não conseguia se livrar daquele peso no estômago.  Não conseguia deixar de se sentir irritado por descobrir que o amor de João pela moça o impedia de tentar revê-la outra vez.  Jonas estava confuso.

        - Sinto muito por João.  Posso imaginar o que ele deve estar sentindo.  A senhora quer que eu tente conversar com ele? – Jonas perguntou meio sem convicção.

         - Não é uma boa idéia.  Se ele desconfiar que eu lhe contei esse segredo, nunca mais se abrirá comigo de novo.  Fique perto dele por esses dias e, se ele comentar algo, use o seu bom senso. – a avó abriu um sorriso que demonstrava a confiança que tinha no caráter do neto mais velho.

         - Claro, vovó. – Jonas não ousou olhar nos olhos de dona Beatriz, pois não estava totalmente refeito de sua surpresa.

         - E eu pensando que era o único a ter problemas nessa família! – Jonas riu desanimado. 

         - Todos nós temos problemas, meu filho.  Faz parte da vida.  No entanto, os seus problemas são mais urgentes que os de seu irmão.  E era isso que deveríamos tratar agora.  Mas, tome um banho e troque-se, pois ainda temos tempo.  Eu ficarei esperando por você na cozinha.  Não demore, pois o jantar continua a ser servido as sete mesmo que aconteça um dilúvio em São João da Barra.  – a matriarca disse essas últimas palavras levantando-se da cama onde estivera sentada e dirigindo-se até a porta.  Outra vez, ela não olhou para o semblante do neto que continuava a fitar à janela. 

        Jonas procurou, em vão, uma explicação para o que estava sentindo.  Era um misto de ciúme, raiva, culpa e vergonha.  E quanto mais pensava no assunto, mais surpreso ficava com a sua incapacidade de refletir sobre o que estava acontecendo.  Sentia-se também assustado.  Nunca acreditou que uma pessoa equilibrada não pudesse controlar seus sentimentos e agora, em poucas horas, era assaltado por sensações intensas e inexplicáveis. 

        Tentou refazer-se o mais rápido possível.  Lavou o rosto num pequeno lavatório de louça que ficava sobre a cômoda.  Olhou-se no espelho e teve que admitir que a confusão interior estava estampada na cara, mas não havia jeito de disfarçar.  Desceu as escadas e se dirigiu à cozinha.  Ainda queria usufruir um pouco mais da companhia da família antes do jantar.  As reuniões em torno da mesa da cozinha eram sempre muito apreciadas, pois todos podiam conversar descontraidamente sem a presença do pai.  Já, na hora do jantar, o clima sempre ficava um pouco mais tenso.  Não era conveniente falar despreocupadamente quando temido coronel Antônio estava entre eles.

        Após um rápido banho, trocou a roupa enlameada por calças de linho e uma camisa de seda branca.  Depois, voltou a reunir-se com os familiares, na cozinha.  Conversou um pouco com a avó sobre a reunião que teria com o pai após o jantar.  Provou todos os doces que foram postos à sua frente.  Era bom estar de volta.  Sentir o cheiro da casa em que crescera e ter a companhia das pessoas que amava.  Sentiu falta do irmão, mas não poderia imaginar que João estava muito longe, a procura de certa jovem.