Capítulo I - O ENCONTRO

 

    Jonas estava a caminho de casa.  Ainda faltava um bom tempo de cavalgada até poder avistar a fazenda da sua família.  Mesmo assim, mantinha o cavalo num trotar vagaroso, pois queria apreciar todos os momentos possíveis de solidão.  Naquele instante, a solidão era tão necessária como o ar que ele respirava.  Precisava acalmar o espírito e conciliar os pensamentos para o reencontro com os familiares.  Aquela não era uma visita comum e talvez significasse o seu retorno definitivo.  Isso atemorizava o jovem, pois, voltar significaria abandonar os seus sonhos de infância muito próximos de serem realizados.  Não podia deixar que aquilo acontecesse!  Mas, para tanto, tinha que enfrentar a pessoa mais temida daquele município: seu pai.

    Ele vinha admirando tudo a sua volta como se não conhecesse quase de cor todos os recantos daquele lugar.  A estrada de chão que dava na fazenda de sua família exibia uma paisagem muito bonita, com belas propriedades que ainda possuíam um pouco da vegetação típica da região.  O verde vivo do mato ao redor da estrada era decorado por pontos coloridos de flores que pareciam ter sido meticulosamente plantados por algum jardineiro habilidoso. A vegetação de restinga, recoberta por uma grama curta, como um tapete verde em todas as direções, era salpicada por diversos tipos de bromélias e cactos.  Arbustos com troncos retorcidos, pés de pitangas e de caju formavam pequenos oásis de refúgio para animais e aves. 

    O município tinha uma grande faixa de litoral banhada pelo oceano Atlântico e os ventos úmidos vindos do mar tornavam o clima da cidade agradável quase o ano todo.  Aquelas terras brindavam os viajantes com um belíssimo cenário, principalmente ao pôr-do-sol.  Todas as tardes, o grande astro borrava o céu de nuances douradas que tornavam as paisagens bucólicas e poéticas, as mesmas paisagens que ele reencontrava naquele momento.  Jonas tinha se esquecido de como sua terra era linda!  Ele nascera ali e ali crescera.  Sua cidade querida de São João da Barra, no extremo norte do estado do Rio de Janeiro. 

    Sempre que voltava da capital, o jovem preferia viajar a cavalo da estação da cidade até o distrito de Grussaí, onde ficava a propriedade de sua família, por isso, ao desembarcar, montou em seu cavalo, que lhe fora trazido por um dos empregados de seu pai, e resolveu seguir viagem, sozinho.  Apesar da distância, percorrer aquela região era sempre um prazer para Jonas.  Ele cavalgava em direção à praia e passeava pelo litoral até a pequena comunidade de seu distrito.  A brisa do mar acalmava o seu espírito e ajudava a colocar a sua cabeça em ordem, porque sabia o que enfrentaria quando, finalmente, chegasse à fazenda.  Precisava organizar os pensamentos e preparar-se para a discussão que certamente aconteceria.

    Ele havia se mudado para a capital há alguns anos, quando fora cursar a faculdade de medicina que sempre sonhara fazer, apesar da relutância de seu pai em atender tal pedido.  O temido coronel Antônio Gouveia e Castro não queria custear seus estudos na capital, mas a insistência do rapaz foi mais forte do que a truculência do genitor.

     Jonas estava muito a tempo sem fazer uma visita à sua família, por isso, entristecia-se de não poder saborear o reencontro com seus entes queridos, antes de encontrar-se com o coronel.  A avó e os dois irmãos mais novos certamente estariam tão ansiosos para vê-lo como ele próprio estaria por reencontrá-los, mas sabia que teria que enfrentar seu pai tão logo chegasse à fazenda e, possivelmente, dependendo do fim de tal conversa, não teria tempo de estar com eles outra vez. 

    Quando recebera a carta de seu pai ordenando-lhe que retornasse ao lar imediatamente, era um sinal de que havia novos planos para a sua vida.  Só que o rapaz não estava disposto a cumprir àquelas ordens se isso significasse sacrificar o sonho de se formar em medicina. 

    Ele tinha o palpite de que o coronel tentaria convencê-lo a disputar as eleições municipais já que não escondia de ninguém que esperava que pelo menos um de seus filhos também seguisse seus passos na política (o pai já fora eleito vereador por três mandatos e concorrera à prefeitura uma vez, mas a morte da esposa o havia feito desistir da candidatura em nome de outro correligionário).  Contudo, Jonas sempre pensou que o eleito natural para essa missão seria o seu irmão, João Pedro.  O filho mais novo já estava acostumado a andar com o pai e seus amigos, em reuniões do partido. 

    No entanto, ao receber uma carta de sua avó, dona Beatriz, pedindo que se preparasse para a possibilidade de mudanças drásticas em sua vida, passou a temer pelo seu tão sonhado futuro.  Com as eleições municipais tão próximas, certamente o coronel pretendia que ele se envolvesse nas disputas eleitorais.  Jonas só não sabia como se encaixaria nos planos do pai.  Todos esses pensamentos o absorviam tanto que não percebeu que tomara o caminho errado e seguira por outra estrada, numa direção oposta ao seu destino e já havia algum tempo. 

    Quando ele tentou refazer o caminho de volta, por pouco não bateu contra uma carroça que vinha logo atrás, em grande velocidade.  Ao retornar, seu cavalo quase se chocou com o pequeno burro que puxava a carroça, fazendo o animal levantar as duas patas fronteiras.  As patas do burro atingiram a cabeça de seu manga-larga que também se levantou inesperadamente, jogando-o para fora de sua cela e levando-o ao chão.  Jonas caiu em uma poça de lama, no meio da estrada, uns dois metros atrás de seu cavalo.  A carroça, por sua vez, disparou em sentido contrário ao que vinha, mas o condutor conseguiu controlar o animal, alguns metros depois.  Quando já estava de pé, ele pôde ver aproximar-se uma jovem caminhando com passos apressados.

    - Sinto muito, senhor, não sei o que deu no pobre animal! O senhor está bem? O senhor se machucou? - Sua voz aflita era quase um sussurro.

    Jonas não olhava para a moça, pois tentava acalmar seu cavalo que lutava para desvencilhar-se dele.  Ficou naquela batalha por mais alguns segundos até que o animal aquietou-se.  Ele então, virou-se e percebeu que a jovem era muito bonita. 

    O sol brilhava em seus cabelos castanhos dando-lhe tons acobreados.  O rosto possuía traços delicados.  Os olhos grandes e límpidos tinham a mesma cor dos cabelos.  Era pequena e estava mais magra do que deveria, pensou Jonas, mas essa constituição frágil tornava o conjunto até mais gracioso.  Os lábios finos permaneciam entreabertos na tentativa de controlar a respiração acelerada e sua face estava corada, possivelmente devido ao esforço que fizera para controlar o burro que puxava a sua carroça.

    Ele ficou tempo demais naquela contemplação, sentia-se preso pelo belo par de olhos cor de mel que o olhavam assustados.  Aquele rosto era uma surpresa para Jonas.  Havia algo familiar naquela jovem, apesar de ter certeza de que nunca a vira em sua vida.  Alguns segundos depois, como se despertasse de um transe, Jonas procurou cumprimentá-la com naturalidade.

    - Bom dia, senhorita.  Desculpe meu silêncio. Acho que fiquei um pouco atordoado devido a queda, mas, sim, estou perfeitamente bem.  E a senhorita, machucou-se?

    Ela apenas acenou em negativa com a cabeça, apertando os lábios em sinal de nervosismo.  Na verdade, parecia estar em pânico, mas Jonas não sabia exatamente o porquê.  Ela mantinha o olhar no chão da estrada e cruzou os braços numa demonstração de medo.  Manteve-se em silêncio, enquanto Jonas buscava sua carroça e recolhia os objetos que haviam caído e se espalhado na estrada.  Ele concentrou-se naquela tarefa com o objetivo de controlar seu desejo de abraçar aquela desconhecida.  A estranha reação dela dava-lhe vontade de tomá-la nos braços.

    Jonas estava assustado com os devaneios sensuais que o assaltaram.  Não era de seu feitio se deixar levar pelos impulsos, mas aquela jovem deixara-o tão impressionado que não conseguia controlar o rumo dos seus pensamentos e isso também era impressionante, pois já estava habituado a lidar com o sexo oposto.  Por que ele sentia aquela súbita atração por uma simples moradora da fazenda?

    Como não ouvia mais nenhum ruído além de seus próprios passos, resolveu virar-se e verificar onde a jovem estava.  Ao voltar-se para trás, avistou-a, ainda imóvel, no mesmo lugar olhando para ele.  Jonas sentiu-se irritado com o receio que ela demonstrava de estar em sua presença.  Ora! Ele não era nenhum criminoso, por isso, decidiu acabar logo com a tarefa de recolher os objetos.  Precisava sair dali o mais rápido possível e livrar-se daquela situação desconfortável.

    - Pronto.  Já recolhi tudo que caiu ao chão.  Meu cavalo e seu burro estão prontos para partir...  A senhorita está bem? – indagou o jovem estudante.

    Ela continuava imóvel.  Jonas pode perceber que um leve tremor a balançar os seus lábios estreitos. Estava surpreso por provocar tanto medo nela.  O que será que se passava na cabeça dessa moça?  Por que estava agindo como se ele fosse algum malfeitor?  Tentava encontrar uma justificativa para o comportamento da jovem, mas continuava vidrado nos seus olhos.   Preso ao seu rosto miúdo e trêmulo.  Pensou que ela ficava até mais bonita daquele jeito assustado. Ele se sentia incapaz de manter distância daquele corpo que parecia pedir para ser abraçado.  Contudo, o olhar da moça demonstrava tanto temor que ele apenas estendeu a mão para tocar o seu rosto e perguntou o seu nome.

    - Ana. - ela disse e, automaticamente, deu um passo para trás afastando os dedos do rapaz de sua pele. - Posso ir, senhor?

    “Ela o reconhecera!”, concluiu Jonas.  Sabia que ele era filho do coronel Antônio Gouveia.  Sabia que tinha provocado a queda do filho do dono de todas aquelas terras.  Provavelmente estava com medo de sofrer alguma repreenda por ter sido a responsável.  Jonas sentiu mais do nunca que precisava sair dali, pois a reação da jovem o deixava cada vez mais incomodado.

    - Não precisa ficar assim, moça, não aconteceu nada de mais.  Ninguém se machucou. Posso ajudá-la a subir em sua carroça? – disse o jovem tentando confortá-la

    - Não precisa, não.  Eu consigo sozinha. – Ana respondeu, apressando-se em tomar as rédeas das mãos de Jonas. 

    Ela estava ansiosa para ir embora e aquele gesto deixou-o irritado de novo.  Não estava acostumado a ser tratado daquele jeito.  Era um cavaleiro e sempre fora requisitado pelas moças, na capital, por isso sentiu-se ofendido com o temor da jovem em relação à sua presença.  Justamente uma moça simplória, provavelmente filha de um dos colonos do pai, demonstrara aversão a ele.  Não se considerava um homem fútil, mas sabia que sua aparência chamava a atenção das mulheres, principalmente, das moças pobres da fazenda, como aquela.

    Ana estava se preparando para subir na carroça e Jonas, sem pensar, segurou-a ainda de costas, com as duas mãos em sua cintura, virou-a para si, num giro rápido, e suspendeu-a para que se acomodasse no assento do condutor.  Mas o movimento foi muito brusco.  Ela perdeu o equilíbrio tombando o corpo para frente e chocando-se de encontro ao peito de Jonas. 

    Para evitar que os dois caíssem, Jonas segurou a lateral da carroça e enlaçou a cintura de Ana.  Quando os pés de Ana tocaram o chão, os dois ficaram muito próximos.  Ela ficou a poucos centímetros de Jonas.  Ele podia sentir o perfume dos cabelos e o calor de sua respiração.   Instintivamente, colou seu corpo ao dela, prendendo-a contra a lateral da carroça.  O corpo pequeno ficou encostado ao seu de tal modo que era possível lhe ouvir as batidas do coração.  Os lábios dos dois quase se tocavam.  Era como um convite irresistível para um beijo.  Jonas não conseguia controlar seus instintos, tão próximo daqueles lábios delicados.  Ficaram alguns segundos, paralisados, um olhando para o outro.  Os olhos de Ana brilhavam intensamente.  Seus olhos pareciam pedir algo, mas ele não conseguia definir o quê.  Quando ele ia consumar o beijo, ela baixou a cabeça.  Jonas estava totalmente dominado pela idéia de beijá-la.  Não conseguia perceber o que estava fazendo e se deixou levar pelos seus instintos.  Levantou-lhe o queixo e procurou seus lábios.

    No entanto, quando conseguiu que ela o fitasse, percebeu que ela estava chorando.  Sentiu-se culpado pelo atrevimento.  Soltou-a lentamente, mas não se afastou.  Não sabia o que fazer e não queria se afastar.  A sensação do corpo de Ana tão próximo, dava-lhe um topor, embaçava-lhe a mente.  Ela colocou suas mãos sobre seu peito forçando para que ele recuasse, mas seus esforços não provocaram o menor movimento de Jonas.

    - Por favor... – pediu a jovem, as lágrimas brotavam de seus olhos. – Deixe-me ir embora.

    - Desculpe-me. - respondeu o rapaz, e, como que acordando de um sonho, recuou alguns passos.  Não conseguia entender o que tinha acontecido.  Aquela moça não fizera nada para ser assediada daquela maneira e ele havia se comportado de uma forma muito estranha.  No entanto, sentia-se incapaz de justificar-se, pois ainda queria beijá-la.

    Ele permaneceu imóvel, olhando-a. Lágrimas  umideciam o belo rosto e ela tentava enxugar as faces molhadas com as palmas das mãos.  Ana afastou-se, deu a volta na carroça, subiu-a pelo lado oposto ao que Jonas estava e partiu rapidamente em sentido contrário ao da fazenda de seu pai.  Jonas só começou a movimentar-se depois que a carroça sumiu no horizonte.

    Ele sabia que havia sido com grande esforço que não a beijara à força.  Estava surpreso com o a intensidade de seu desejo e não conseguia esquecer as sensações que experimentou com a proximidade do corpo da jovem.  Era difícil descrever o que sentira por uma completa desconhecida. 

    Jonas montou em seu cavalo e retornou para o caminho que o levaria à sede da fazenda.  Ele ainda tentava entender o que havia ocorrido, naquele lugar.  Que tipo de magia tinha conseguido mudar tanto o seu comportamento.  Ele não era assim!  Ele nunca se deixara levar por um rosto bonito, contudo, havia algo de arrebatador naquela figura tão frágil.  Algo que o deixara completamente fora de si, dominado por um ímpeto que nunca havia sentido na vida.  Aquele encontro fora, de fato, muito marcante.  Não sabia nada sobre aquela moça.  Pela sua aparência, parecia mais uma colona da fazenda.  Estava andando muito rápido com a carroça e devia estar com pressa para chegar a algum lugar.  Só sabia uma única coisa a respeito dela: o nome. 

    Infelizmente, ele não poderia continuar ocupando a sua mente com aquela aparição.  Não havia com voltar atrás.  Mas será que se pudesse voltar no tempo, faria algo diferente?  Ele tinha dúvidas.  Aqueles olhos tiveram o poder de enfeitiçá-lo e, no íntimo, sabia que algo mágico havia acontecido.  O mais surpreendente era que ele não acreditava em magia.  A verdade era que não saberia descrever racionalmente o que havia acontecido.  Só sabia que nunca mais poderia ficar indiferente àquela jovem.

    Jonas balançou a cabeça de um lado para o outro tentando esquecer o que acabara de acontecer.  Deveria pôr a sua mente em ordem para a conversa que teria com o temido coronel Antônio Gouveia.  Aquele encontro poderia ser relembrado mais tarde, quando seu destino já estivesse sido resolvido.  Forçou-se em repassar o discurso que havia selecionado para fazer em sua defesa quando encontrasse com o pai.  Talvez, somente o poder das palavras corretas poderia salvá-lo do futuro incerto que o aguardava.

 

 

 

    Do outro lado da estrada, Ana corria o máximo possível com sua carroça, mas o burro já estava muito cansado pela marcha forçada e estacou no meio do caminho.  Felizmente, já não era mais possível avistar aquele homem.  Então, ela desceu do assento e partiu em disparada para dentro do mato que margeava a estrada e levava à pequena casa de sua família. 

    Não queria ver ninguém, pois ainda não conseguira parar de chorar e não queria dar explicações sobre seu estado.  Temia ser seguida por Jonas.  Ainda podia sentir o aperto de seus braços em volta de seu corpo.  Não saia de sua mente o olhar do jovem procurando os seus lábios.  Sabia que seria forçada a qualquer coisa se ele realmente quisesse, pois Jonas Gouveia era um homem forte e parecia determinado a beijá-la. 

    Ana correu pelo terreno acidentado recoberto por árvores e arbustos até não conseguir mais dar nenhum passo à frente.  Caiu no chão arenoso e deixou-se ficar ali até se acalmar.  Só ela sabia o risco que correra nos braços daquele homem.

    Nunca vira um rapaz tão...  perigoso.  Ele era diferente de todos os homens que conhecera.  Suas roupas elegantes, a fragrância de colônia que se desprendia de seu corpo e o rosto limpo, perfeito demais para um homem simples, eram indicações de que ele não era um jovem qualquer.   Sua pele não era queimada de sol como dos trabalhadores da fazenda, ele era claro.  A brancura de seu rosto contrastava com os cabelos muito pretos, tão pretos como os olhos. Os lábios eram finos e rosados como os de uma moça.  Seu semblante era suave e seu sorriso era amplo como o de quem não temia nada.  Mas quando a segurou contra si, estava muito sério e uma expressão indecifrável.  Nesse momento, pareceu com o pai. 

    Sim, reconhecera imediatamente o filho do dono daquelas terras.  Mesmo que nunca o tivesse visto, ainda um garoto brincando por aquelas estradas, por aqueles pastos... saberia que se tratava de uma pessoa diferente das que estava acostumada a lidar no dia a dia da fazenda.  Ele parecia iluminado!  E o porte de seu corpo revelava que tinha toda noção de sua posição social. 

    Ana tinha medo de ser punida por lançá-lo ao chão.  Sua mãe não precisava de mais problemas com os Gouveias.  Já bastava ter um marido que tentou matar o patrão e um filho ressentido que vivia fazendo ameaças de vingar-se.  Ninguém nunca acreditaria que a queda não fora provocada, mas acidental.  Afinal, a causadora tinha sido a filha de um ex-empregado procurado por tentativa de assassinato.

    A jovem recomeçou a sua caminhada, agora mais vagarosamente.  Ainda não poderia voltar para sua casa.  Estava sentido o rosto queimar e as lágrimas ainda brotavam de seus olhos.  Tinha que esperar em algum lugar e se acalmar se não quisesse ter de explicar sobre o que acontecera à família.  Decidiu, então, ir até um lugar que era seu esconderijo. 

    Após mais alguns minutos, chegou ao local.  Uma pequena cabana abandonada no meio do mato, já parcialmente destruída pelo tempo.  Entrou no cômodo vazio e sentou-se num punhado de sacos com palha que ficavam num canto do lugar e, às vezes, servia de cama para ela descansar depois do trabalho.  Costumava ir ali quase toda tarde, principalmente depois que os problemas com seu pai começaram.  Era bom ficar sozinha por algumas horas e fugir de todo o sofrimento e da visão da mãe doente e fraca.   Sentia-se um pouco egoísta, mas era penoso ver a família passar tanta necessidade material.  Sempre foram pobres, mas, no passado, tinham o suficiente para viver dignamente, contudo, depois da prisão do pai, as coisas iam de mal a pior na casa dos Ferreiras e, para agravar a situação, a mãe contraíra uma doença grave que a debilitava a cada dia.  Aquele encontro só tornava sua vida mais difícil e ela precisava se esconder daquele rapaz para não complicar mais a vida de seus familiares. 

    A lembrança dos últimos acontecimentos trouxe de volta o medo.  Havia saído com a carroça para pegar algumas galinhas que foram doadas a família por um dos colonos.  Ana trabalhara, limpando uma casa em troca de alguns trocados, e a esposa gostara tanto do serviço que convencera o marido a dar algumas das aves de sua granja para ela.  Estava com pressa de chegar à casa da mulher, pois queria preparar uma das galinhas para o jantar.  Não percebera que estava muito próxima do cavalo de Jonas e, quando ele fez menção de retornar com o animal, não conseguiu parar a carroça antes da colisão.

    Precisava se acalmar e avaliar a situação.  Verificar o risco que tudo aquilo poderia causar para sua mãe e para si mesma.  Ele quase a beijara à força, mas não parecia ser um homem rude como a maioria dos colonos da fazenda.  Sempre ouvira falar muito bem de Jonas Gouveia, o filho mais velho do coronel Antônio Gouveia e de sua falecida mulher, dona Carolina.  Seu irmão, Miguel, passara a infância brincando com Jonas e o irmão menor, João Pedro, e sempre falara muito bem deles. 

    Miguel era um bom rapaz e, portanto, poderia confiar na avaliação do irmão.  Mas o amigo passara vários anos no Rio de Janeiro e quando raramente vinha para São João da Barra quase nunca era visto pelas redondezas.  Miguel foi servir o exército logo depois, por isso, fazia muito tempo que os dois não se encontravam e Jonas parecia ter mudado muito nos últimos anos, mas se ele não a reconhecera como havia notado, estariam todos salvos.  Era só permanecer escondida dos olhos dos moradores do casarão até que o rapaz fosse embora novamente. 

    Mas se ele estivesse de volta de vez?  Já ouvira alguns boatos de que o coronel o havia chamado às pressas da capital.  Será que assuntos importantes o prenderiam definitivamente na fazenda?  Isso não poderia ocorrer, pois não conseguiria ficar a vida toda escondida de suas vistas!

     De qualquer forma, não havia alternativa para ela.  Teria que evitar ficar próxima da sede da fazenda.  Precisava também contar para a mãe o que acontecera, porque todos deveriam ficar atentos a uma possível vingança por parte do fazendeiro.  O coronel sempre achava que o que acontecia de errado em suas terras era causado por Miguel.  Não sem razão, é claro, já que o irmão tinha aprontado muitas encrencas na fazenda.

    De repente, Ana percebeu que já estava anoitecendo.  Precisava voltar para a estrada, pegar a carroça e correr para a casa, pois deveria ajudar a mãe com os irmãos mais novos.  Aquele problema teria que esperar até depois do jantar...  se Miguel tivesse tido mais sorte que ela àquela tarde.