Capitulo II - O PASSADO BATE A PORTA

 

    Dona Luciana tentava levantar-se da cama, mas o corpo debilitado pela doença parecia não ter mais vida.  Contudo, sua mente estava tão lúcida como nos tempos de juventude e isso tornava seus dias muito mais difíceis.  Aquela situação era um verdadeiro tormento, um corpo moribundo aprisionando um espírito cheio de energia. 

    Não podia ficar naquela cama esperando a morte chegar.  Precisava levantar-se, cuidar dos filhos, lavar as roupas sujas que estavam se acumulando e preparar algo para a família comer.  Pelo menos os filhos menores deveriam colocar algo substancial no estômago.  

    Ela riu de seu próprio infortúnio e num derradeiro esforço jogou as pernas para fora da cama, escorregou até o chão frio e só não caiu totalmente, porque duas mãos fortes a suspenderam pelo tronco, colocando-a novamente na cama.  Voltou o rosto para agradecer a seu filho Miguel que sempre estava por perto para socorrê-la, caso, teimosamente, tentasse se levantar.  Mas o rosto que encontrou era bastante diferente e... conhecido.

    - Não... – conseguiu balbuciar antes que dedos fechassem seus lábios.

    - Sem medo, por favor, Nana.  Medo é uma coisa que não lhe cai bem! – sorriu Antônio, satisfeito com a perturbação que causava na dona da casa.

    - Saia daqui, coronel.  Eu não estou com medo.  Só quero evitar que meus filhos o vejam. – pediu a doente olhando para a porta do quarto.

    - Seu filho mais velho saiu com os dois menores e a menina, Ana, ainda não chegou.  A carroça não está lá fora, não se preocupe.  Tomei cuidado para não dar de cara com o Miguel.  - Falou o coronel, sorrindo divertido e afastando-se da cama para evitar uma aproximação indevida.  Havia muito tempo que não ficava tão perto daquela mulher e isso mexia com ele muito mais do que pensava ser possível.

     - Mesmo assim, eles podem chegar a qualquer momento e encontrar o senhor aqui.  Não vai dar certo.  Por favor, vá para sua casa.  - pediu Luciana.  Aquele homem em seu quarto parecia mais alto do que era, preenchia todos os espaços disponíveis do pequeno cômodo.  Ele estava muito perto dela e isso a deixava desconfortável.

    A fisionomia divertida do coronel Antônio Gouveia desapareceu dando lugar à sua, costumeira, expressão fria.  A insistência de Luciana em ver-se longe dele o irritava.  E ele já não achava tanta graça na surpresa que fizera à dona da casa.

     - Eu não vim fazer uma visita social, Nana.  Trouxe o médico da cidade para ver você, pois o último doutor que mandei, seu filho se encarregou de botá-lo porta a fora, como se você só estivesse com um resfriado.  E já basta disso!  O orgulho tem limites até para você! – Antônio estava colérico.  Aquela mulher, mesmo à beira da morte, podia ser tão irritante como em seus melhores dias.  Ele não esperou por nenhuma resposta, virou-se e chamou o doutor que já se encontrava no corredor à espera de permissão para entrar.

    Quando o doutor Lauro entrou no pequeno quarto mal iluminado e úmido, Nana permaneceu em silêncio sem olhar na direção da porta onde estava o coronel Antônio.  Sabia que ele estava furioso com a maneira como ela o havia tratado, mas a presença dele ali a ofendia.  Mesmo sendo uma ajuda tão necessária, não poderia ter vindo de pessoa mais imprópria.  Odiava aquele homem e odiava precisar de sua caridade em qualquer sentido.  No entanto, a vida sempre a fez depender dele mesmo antes do crime que seu marido fora acusado de cometer e de seu sumiço, deixando a família passar por dificuldades financeiras.  Agora ele estava ali trazendo ajuda mais uma vez.  Odiava reencontrá-lo e a freqüência com que isso vinha acontecendo nos últimos tempos era insuportável para ela.

    Durante toda a sua vida vivera naquelas terras.  Seus pais foram colonos dos Gouveia e Castro.  Ela crescera junto com aquele homem odioso, mas naquela época ele era muito diferente.  Era o jovem mais gentil e carinhoso do mundo. 

    O coronel fora o grande amor de sua juventude, no entanto, o passado tinha sido enterrado a mais de vinte anos atrás e não voltaria, a não ser em suas lembranças.  O mundo tinha transformado o doce Antônio em um dos fazendeiros mais importantes e temidos de toda a região do norte fluminense.  E ela própria também tinha mudado muito naqueles anos.  Nana não era mais a moça simples e romântica que fora no passado.  A vida que tivera naquele lugar se encarregou de amadurecê-la à força e os problemas do marido tinham lhe tirado as últimas ilusões a respeito do amor.  Luciana e Antônio não eram mais as mesmas pessoas e nunca poderiam se perdoar pelas ofensas e desilusões que ambos se provocaram mutuamente.

    - Precisa fazer repouso absoluto, dona Luciana.  E deve tomar esses remédios nos horários prescritos no papel.  A senhora sabe ler? – perguntou o médico ao final de alguns minutos de exame. 

    A mulher fuzilou o médico com um olhar.  Sempre perguntavam isso a ela.  Será que essa gente da cidade pensava que as pessoas das fazendas eram todas tão ignorantes assim?  Ela tinha completado o curso primário, ali, na escola da fazenda e só não dera prosseguimento aos estudos porque o pai não tinha recursos financeiros para pagar as despesas de sua educação na cidade, mesmo assim, Luciana orgulhava-se de ter boa leitura e uma caligrafia belíssima.

     - Nana, doutor Lauro está lhe fazendo uma pergunta?  Você está bem? – perguntou Antônio aproximando-se da cama preocupado com a imobilidade da doente.

     - Eu sei, sim senhor. – a mulher respondeu irritada. - Sei ler e escrever, doutor.  Não precisa se preocupar, pois vou tomar todos os remédios nos horários certos. – afirmou sem olhar para o coronel.

    - Bom, nesse caso, já vou indo.  Passo aqui, na semana que vem para vê-la novamente. – o doutor apressou-se em despedir-se desconfortável com a franca hostilidade de Luciana para com seu benfeitor. 

    Ela sabia que ele ainda estava no quarto.  Luciana não se moveu, lágrimas de frustração desciam de seu rosto.  Não queria passar por fraca diante daquele homem e sabia que ele esperava uma reação de sua parte, mas ela permaneceu imóvel por longos minutos até que, finalmente, ele próprio falou:

    - Não vou deixar que sua teimosia te mate!  Pode me odiar o quanto quiser... tem motivos para isso, mas tem filhos ainda pequenos que precisam de você.  Eu prometo que não volto mais aqui se me prometer aceitar o tratamento que estou oferecendo. - Antônio contava que Luciana tivesse tanta aversão à sua presença que aceitaria a sua ajuda só para se ver livre dele.

    Ela olhou seu rosto surpresa com aquelas palavras.  Não havia sinal de raiva, mas sim de preocupação.  Aquele homem tão altivo estava quase pedindo para que ela se salvasse.  Seu gesto tinha sido sincero, mas, mesmo assim sentia-se humilhada em aceitar sua ajuda.  Ele queria curá-la daquela doença e isso o tornava perigosamente parecido com o jovem que amara no passado.  Não conseguiu falar.  Ao abrir a boca, soltou um imenso soluço e, em segundos, estava aos prantos diante daquele homem.  Deixara acontecer tudo o que mais temia, estava expondo suas fraquezas para o seu maior inimigo.

    Antônio ficou surpreso com a reação da doente.  Sentia vontade tomá-la nos braços e ao mesmo tempo queria sair correndo dali. O remorso corroia-o por dentro.  Não devia ter ido até lá.  Agora Nana estava tendo uma crise de choro bem ali na sua frente.   Ele ficou parado, meio bestificado com o que estava acontecendo, mas, depois, aproximou-se mais da cama, sentou-se perto da cabeceira, ainda do outro lado, esticou a mão e pegou a da doente.  Olhou intensamente para seus olhos e ficou, assim, segurando sua mão esquerda e vendo-a chorar por muito tempo. 

    Quando Nana conseguiu serenar seu pranto, o fazendeiro soltou sua mão e saiu do quarto sem dar uma palavra ou olhar para trás.  Sozinha, a mulher não pensou em mais nada além do toque das mãos daquele homem.

 

 

 

    Ao sair do quarto de Nana, Antônio passou por uma pequena saleta desprovida de móveis e alcançou a porta de fora dando longas passadas.  Sentia-se muito mal com tudo aquilo.  Não pensou bem no que fizera.  Cometera um erro ao trazer o médico pessoalmente.  Contudo, a mulher estava muito mal, por isso foi até lá com medo que ela ou o filho mandassem o médico voltar para a cidade caso outra pessoa o trouxesse.  Contudo, logo depois, teve que admitir que tudo era mentira.  Fora lá, simplesmente por que queria vê-la.  Mas, ver Nana daquele jeito foi muito triste.  Ela parecia mais morta do que viva.  A doença havia tornado sua aparência mais frágil.  Pela primeira vez constatou que a mulher estava realmente doente.

    No entanto, apesar da moléstia, ela continuava ainda muito bonita.  Ainda tinha os cabelos longos e avermelhados que contrastavam com a pele clara.  Os olhos castanhos também tinham os mesmos reflexos esverdeados quando ela ficava irritada.  Ela ainda era a mesma Nana que deixava os homens loucos por aquelas bandas, mas, se ainda era bonita, também continuava muito teimosa e isso não ajudava em nada o seu tratamento.   O choro incontido só deveria ter provocado maior prostração. Não deveria ter tentado consolá-la daquele jeito, entretanto, não esperava que àquela visita pudesse transtorná-la a tal ponto. 

    Ele mesmo estava se sentindo estranho.  Havia muito tempo que prometera a si mesmo que se manteria longe daquela mulher.  Ainda sentia as mãos quentes sob as suas e isso o deixava fora de si.

    Não deveria ter ido até lá!  Era provocação demais, mesmo assim não conseguira refrear seu desejo de vê-la e de forçá-la a aceitar a sua ajuda.  Enfim, tinha que admitir que fora mais por arrogância que por interesse altruísta que se dispusera a se embrenhar naquele pedaço de mata, no meio do dia, para prestar socorro à mulher de um criminoso foragido.  Contudo, agora estava arrependido de sua intempestividade.  Ele a magoara com a sua presença ali e, talvez, a visita inesperada contribuísse para piorar a doença ainda mais.  Não queria agravar o seu problema de saúde e decidiu que, da próxima vez, mandaria um capataz trazer o doutor. 

    Quando saiu da casa, avistou o médico parado à porta remexendo dentro de sua maleta.  O pobre homem havia saído tão rápido do quarto de Nana que mal pode recolher seus instrumentos de exame.

    - Doutor Lauro, siga-me – chamou o coronel, passando por ele na soleira da porta.

    Antônio seguia rapidamente pelo mato que conhecia tão bem.  Precisava se apressar para se encontrar com Jonas, por isso não se preocupava muito em ser cortês e esperar pelo acompanhante.  Deveriam atravessar todo o terreno onde se localizava a casa da família Ferreira para buscar os cavalos na estrada bem distante dali. 

    Ele gostaria de estar na fazenda quando o filho chegasse, mas já era tarde e, talvez, ele já tivesse no casarão.  Necessitava ter uma conversa muito difícil com o rapaz e não queria dar tempo para que ele usasse alguma desculpa e adiasse àquela entrevista.  Sabia que Jonas estava receoso e ele também.

    Ia refletindo sobre esse problema imediato quando parou a caminhada ao avistar uma pequena figura que vinha em sua direção.  Era Ana, a filha mais velha de Luciana.  A jovem parecia muito surpresa com a sua presença ali e tentou desviar o caminho para não passar por eles, mas Antônio a chamou antes que fugisse:

    - Menina! Venha aqui! 

    A jovem obedeceu e seguiu em sua direção.  Pôs-se de frente para o coronel, em silêncio.  

    Ela era muito parecida com a mãe, mas tinha um ar tão desprotegido que o coronel sentiu-se arrependido do modo ríspido que a mandara aproximar-se.

    - Levante o seu rosto, menina.  Não vou mordê-la.  Escute, viemos agora mesmo de sua casa.  O doutor Lauro vai tratar da sua mãe até que ela melhore.   – a jovem cumprimentou o médico com um aceno de cabeça.  - O tratamento correrá por minha conta e se algo sério acontecer com ela ou com um de vocês, quero que vá à fazenda e fale comigo, entendeu? – perguntou o coronel tentando suavizar o tom de sua voz.

     - Sim senhor, coronel. - respondeu Ana timidamente. 

    O coronel Antônio tinha pena da filha de Luciana.  Ela sempre fora muito retraída, mas era o único apoio que a mãe tinha na vida.  O irmão mais velho, Miguel, estava sempre metido em alguma confusão e, por isso, nunca parava em um emprego por muito tempo.  Era sempre a pobre moça que ajudava a prover o parco sustento da família e agora, com a mãe doente, também lhe sobraria os cuidados com os irmãos menores, ainda crianças.  A situação da família poderia ser bem melhor se não fosse o orgulho de Nana e a intransigência de Miguel em aceitar a sua ajuda.

     - Vocês são teimosos como umas mulas.  Sua mãe poderia morrer!  Tive que me enfiar nesse mato onde vocês se escondem para forçá-la a aceitar a minha ajuda.  – Antônio começara a sentir raiva.  Não queria descontar sua irritação na jovem, mas não conseguia se controlar.

Esperou que Ana retrucasse as suas palavras como a mãe faria, mas ela parecia petrificada de medo.  Teve pena daquela criatura, pois não herdara de sua genitora a arrogância nem a coragem.  Pode notar também a magreza do corpo que ficava mais evidente pela frouxidão das roupas que trajava.  A cólera voltou com toda a força.  Aquela gente preferia morrer de fome a aceitar qualquer coisa que viesse dele.  Era ultrajante ser tratado daquela forma pela família do homem que atentou contra a sua vida.

    - Seu irmão vai acabar matando uma de vocês de fome.  Olhe você, não come há quantos dias, menina?  É assim que ele diz não precisar de minha ajuda? – o coronel ficava cada vez mais nervoso ao observar a magreza da menina.

     - Quero que vá à fazenda amanhã sem que seu irmão saiba.  Vou te dar alguma coisa para que possam, pelo menos, se alimentar decentemente.  Eu não mato meus colonos de fome!  O silêncio da jovem o irritava cada vez mais. - Fale algo, garota.  Virou uma estátua de cera? – o coronel já estava furioso.

     - Eu vou sim, senhor.  Obrigada por tudo.  - Ana olhou nos olhos do coronel e ele pode ver a agonia em seus olhos castanhos. 

    O fazendeiro tornou a sua voz um pouco mais suave:

    - Vá cedo! – disse o coronel e saiu andando seguido pelo médico.